O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA?
Charbel Niño El-Hani
(Instituto de Biologia/UFBA)
Charbel Niño El-Hani
(Instituto de Biologia/UFBA)
Nos dias de hoje, para convencer às pessoas que o que estamos afirmando é “científico”, parece bastar que digamos que a afirmação é “científica” ou que nos digamos “cientistas”, citando algum catálogo que supostamente diria quem é quem na ciência. Mas esta é uma maneira adequada de pensar a ciência? Nesta conversa, discutiremos critérios para distinguir o que é e o que não é ciência, ou seja, enfrentaremos o problema da demarcação, conforme formulado pelo filósofo Karl Popper, sob influência direta de outro filósofo, Immanuel Kant. Ao discutir esse tema, o problema é freqüentemente formulado em termos da distinção entre ciência e pseudociência. Nesta conversa, contudo, desdobraremos o problema da demarcação em dois problemas distintos: a distinção entre ciência e pseudociência, de um lado, e a distinção entre ciência e não ciência, de outro. Para Popper, o que diferenciaria uma afirmação científica de uma afirmação não científica seria a possibilidade de sua falsificação, ou seja, sua testabilidade. Podemos questionar, contudo, se este critério não seria amplo demais, incluindo afirmações que não têm sido consideradas científicas há um longo tempo. Outro filósofo da ciência, Thomas Kuhn, considerava científicos campos do conhecimento que trabalham à luz de um paradigma, ou seja, de uma estrutura de conhecimento que orienta a investigação de toda uma comunidade de pesquisadores, desde a proposição de questões legítimas de pesquisa até a produção e interpretação da evidência. É possível colocar, no entanto, uma dificuldade também para o critério de Kuhn: o que dizer de áreas que são tipicamente reconhecidas como científicas, como as ciências sociais, mas abrigam em sua pesquisa uma diversidade de paradigmas? Imre Lakatos, por sua vez, construiu uma filosofia da ciência na qual o critério para afirmar que um programa de pesquisa é científico é o seu progresso, tanto em termos teóricos – na forma de previsões novas sobre o mundo –, quanto em termos empíricos, quando ao menos algumas destas previsões são apoiadas por evidências. Mas também há um problema com o critério de Lakatos: ele só pode ser usado retrospectivamente, uma vez que o progresso tenha ocorrido. Se precisarmos julgar no presente se uma determinada área do conhecimento é científica, o critério de Lakatos não nos ajuda, na medida em que o progresso desta área poderia ocorrer no futuro. Um outro filósofo da ciência, Paul afirma que uma teoria ou disciplina que pretende ser científica é pseudocientífica se for (1) menos progressiva do que teorias alternativas por longo período de tempo; (2) enfrenta muitos problemas não-resolvidos, que têm se acumulado; (3) há teorias alternativas que explicam melhor os fenômenos do que ela; (4) a comunidade de defensores da teoria faz poucas tentativas de desenvolvê-la visando à solução dos problemas, não mostra preocupação de avaliar a teoria em relação a outras, e é seletiva ao considerar evidências contrárias e favoráveis; (5) teorias pseudocientíficas são freqüentemente muito complicadas e repletas de hipóteses não-testáveis; (6) pseudociências usam tipicamente ‘raciocínio baseado em semelhanças’, ou seja, modelos analógicos superficiais. Considero que a proposta de Thagard faz avanços interessantes, constituindo uma resposta filosófica ao problema da demarcação que apresenta uma série de aspectos convincentes. Ele também enfrenta, contudo, alguns problemas. Ela sofre da dificuldade indicada acima, no caso da teoria de Lakatos, porque não temos como julgar um possível progresso futuro da teoria. Além disso, como o juízo sobre o caráter cientifico depende de comparação com teoria alternativa, se não houver teoria alternativa, não será possível emitir tal juízo. Um problema apontado por alguns autores é de que, se utilizamos os critérios de Thagard, ser científica não é propriedade imutável de uma teoria. Uma teoria que foi científica no passado pode não ser científica hoje e uma teoria científica de hoje pode deixar de ser científica no futuro. Contudo, consideramos que este é um resultado absolutamente natural e justificado, se a demarcação entre ciência e não ciência for de natureza social e histórica. Desse modo, chego à tese mais central que pretendo defender: que não há solução puramente lógica para a demarcação da ciência, de modo que alguma propriedade das proposições pudesse definir, por juízo inteiramente racional, se elas são cientificas ou não. Isso não quer dizer que critérios de natureza lógica não desempenhem o papel de valores que orientam os juízos sobre o que é e o que não é ciência. Minha visão, contudo, é que a ciência deve ser diferenciada também, e sobretudo, como uma instituição social, mantida pela comunidade científica, que tem construído desde meados do século XIX uma certa forma de discurso sobre o mundo, com propósito de explicar o mundo dos fenômenos naturais. Este é um discurso naturalista que, conforme argumentarei, possibilitou a independência da ciência como modo de produção do conhecimento, em relação a outras formas de conhecimento, em particular, a teologia judaico-cristã. Uma maneira de distinguir se um campo do conhecimento é científico ou não é verificar como a comunidade científica se relaciona com ele, se ela dialoga com trabalhos deste campo e, caso dialogue, quais são os juízos que a comunidade científica emite sobre eles. Não nos parece estranho que uma comunidade de cientistas defina o que é ou não pertinente ao tipo de conhecimento construído por ela, o conhecimento científico. Isso é da natureza de todo conhecimento socialmente constituído, ou seja, de todo conhecimento intersubjetivo humano.
Leitura Recomendada
Chalmers, A. F. O Que é Ciência Afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.
Chalmers. A. F. A Fabricação da Ciência. São Paulo: UNESP, 1994.
Cobern, W. W. & Loving, C. C. Defining “science” in a multicultural world: Implications for science education. Science Education 85:50-67, 2001.
Curd, M. & Cover, J. A. Philosophy of Science: The Central Issues. New York: W. W. Norton & Co, 1998.
Kuhn, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Popper, K. R. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 2000.
Lakatos, I. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa: Edições 70, 1999.
Mahner, M. & Bunge, M. Is religious education compatible with science education? Science & Education 5: 91-99, 1996.
Thagard, P. Why astrology is a pseudoscience (Por que a astrologia é uma pseudociência), in: Curd, M. & Cover, J. A. Philosophy of Science: The Central Issues. New York: W. W. Norton & Co. pp. 27-37, 1998.
Thagard, P. Computational Philosophy of Science. Cambridge, MA: MIT Press, 1993.
No comments:
Post a Comment